Sunday, March 09, 2008

O extremamente radical e magnificamente dócil

Parece contradição de termos. É possível ser radical e dócil ao mesmo tempo? Como misturar água e óleo numa mesma vasilha? E como imaginar a personalidade do Bin Laden somada a tranqüilidade de Gandhi? O ímpeto radical de Hitler unida a serenidade de Madre Tereza de Calcutá? Ou ainda, a resignação de Fidel Castro com a brandura de Betinho ou Paulo Freire? É possível termos essa junção numa só pessoa? Não seria esquizofrenia, dupla personalidade?

Penso que não. Isso porque percebo essa força irredutível e o amor carinhoso e tranqüilo dentro de um mesmo personagem. Seu nome é Paulo, sua função Apóstolo e fazedor de tendas. Seu currículo? Meu Deus, quantas folhas precisamos para .... Senão vejamos.

O lado extremamente radical de Paulo diz:
• “Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando ... prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.” (Fl 3.13-14);
• “Mas esmurro o meu corpo e o reduzo à escravidão, para que, tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado.” (1 Cor 9.27);
• “Quando, porém, Cefas [Pedro] veio a Antioquia, [Eu Paulo] resisti-lhe face a face, porque se tornara repreensível.” (Gl 2.11);
• “Alexandre, o latoeiro, causou-me muitos males; o Senhor lhe dará a paga segundo as suas obras.” (2 Tm 4.14);
• “E nós, na qualidade de cooperadores com ele, também vos exortamos a que não recebais em vão a graça de Deus ... não dando nós nenhum motivo de escândalo em coisa alguma, para que o ministério não seja censurado. Pelo contrário, em tudo recomendando-nos a nós mesmos como ministros de Deus: na muita paciência, nas aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns, na pureza, no saber, na longanimidade, na bondade, no Espírito Santo, no amor não fingido, na palavra da verdade, no poder de Deus, pelas armas da justiça, quer ofensivas, quer defensivas; por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama, como enganadores e sendo verdadeiros; como desconhecidos e, entretanto, bem conhecidos; como se estivéssemos morrendo e, contudo, eis que vivemos; como castigados, porém não mortos; entristecidos, mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitos; nada tendo, mas possuindo tudo.” (2Cor 6.1-10);
• “Outra vez digo: ninguém me considere insensato; todavia, se o pensais, recebei-me como insensato, para que também me glorie um pouco. O que falo, não o falo segundo o Senhor, e sim como por loucura, nesta confiança de gloriar-me. E, posto que muitos se gloriam segundo a carne, também eu me gloriarei. Porque, sendo vós sensatos, de boa mente tolerais os insensatos. Tolerais quem vos escravize, quem vos devore, quem vos detenha, quem se exalte, quem vos esbofeteie no rosto. Ingloriamente o confesso, como se fôramos fracos. Mas, naquilo em que qualquer tem ousadia (com insensatez o afirmo), também eu a tenho. São hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. São da descendência de Abraão? Também eu. São ministros de Cristo? (Falo como fora de mim.) Eu ainda mais: em trabalhos, muito mais; muito mais em prisões; em açoites, sem medida; em perigos de morte, muitas vezes. Cinco vezes recebi dos judeus uma quarentena de açoites menos um; fui três vezes fustigado com varas; uma vez, apedrejado; em naufrágio, três vezes; uma noite e um dia passei na voragem do mar; em jornadas, muitas vezes; em perigos de rios, em perigos de salteadores, em perigos entre patrícios, em perigos entre gentios, em perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre falsos irmãos; em trabalhos e fadigas, em vigílias, muitas vezes; em fome e sede, em jejuns, muitas vezes; em frio e nudez. Além das coisas exteriores, há o que pesa sobre mim diariamente, a preocupação com todas as igrejas. Quem enfraquece, que também eu não enfraqueça? Quem se escandaliza, que eu não me inflame? Se tenho de gloriar-me, gloriar-me-ei no que diz respeito à minha fraqueza.” (2Cor 11.16-30);

Eu não preciso tecer nenhum comentário sobre como Paulo descreve a si mesmo. Um homem extremamente radical. Na casta dos xiitas seria o líder. Contudo, a grande beleza e magnitude da obra de Deus na vida de um homem é que esta não se limita a uma faceta apenas da vida. Afinal, Deus sempre trabalha com um espectro enorme e maravilhoso de feixes que iluminam a vida de seus filhos e através destes os demais.

Senão vejamos a outra face de Paulo, o lado dócil:
• “A todos os amados de Deus, que estais em Roma, chamados para serdes santos, graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.” (Rm 1:7);
• “Não vos escrevo estas coisas para vos envergonhar; pelo contrário, para vos admoestar como a filhos meus amados”. (1 Cor 4.14);
• “Portanto, meus irmãos, amados e mui saudosos, minha alegria e coroa, sim, amados, permanecei, deste modo, firmes no Senhor.” (Fl 4.1);
• “Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de ternos afetos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de longanimidade.” (Cl 3.12);
• “meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós;” (Gl 4.19);
• “Porque muito desejo ver-vos,” (Rm 1.11);
• “Porque não quero, agora, ver-vos apenas de passagem, pois espero permanecer convosco algum tempo, se o Senhor o permitir.” (1Cor 16.7);
• “Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi concedida, não se tornou vã; antes, trabalhei muito mais do que todos eles; todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo.” (1cor 15.10);
• “e, quando conheceram a graça que me foi dada, Tiago, Cefas e João, que eram reputados colunas, me estenderam, a mim e a Barnabé, a destra de comunhão, a fim de que nós fôssemos para os gentios, e eles, para a circuncisão” (Gl 2.9);

A grande questão que se nos apresenta é: já vimos pela relação dos textos um Paulo extremamente radical que: a) avança sempre, não fica olhando para trás; b) Esmurra seu próprio corpo e o reduz a escravidão para não ser desqualificado; c) Resiste o apóstolo Pedro e seu discipulador Barnabé face a face, isso na presença de todos; d) Cita Alexandre como malvado e digno de uma taca divina; e) cita em dois relatos um currículo que deixaria qualquer propagandista da “teologia” da prosperidade completamente pirado. Isso porque estamos fazendo uma análise parcial.

Por outro lado, temos o Paulo magnificamente dócil: a) refere-se aos crentes como amados desejando-lhes a paz; b) Escreve para encorajar como a filhos amados; c) chama-os de santos, amados, minha alegria e coroa; c) instiga-lhe a revestirem de bondade, humildade, mansidão... d) por causa de seus filhos espirituais, sofre dores de parto; d) diz que deseja vê-los e permanecer com eles; e) entende que tudo que ele é, é, pela graça de Deus; e) Honra a Pedro, Tiago e João como colunas da igreja. Eis a face de um Paulo dócil, amável e extremamente preocupado com o bem-estar em Cristo de seus companheiros de caminhada cristã.

Entendo que Paulo conseguiu unir essas duas facetas porque entendeu e viveu dois conceitos que são os pilares da fé cristã – A graça e a glória. A graça é o que recebemos de Deus, a Glória é o que devolvemos a Deus. A graça revela nossa incapacidade, Deus amando o homem, a glória nosso privilégio, o homem honrando a Deus. A graça mostra a nossa fragilidade, a glória o brilho em nosso rosto por refletirmos a face do Altíssimo. A graça de Deus nos faz ver que não somos nada sem Ele. A glória nos atrai de forma que fazemos tudo que o honra, por Ele. A graça nos leva a não ser tão exigente com os outros, pois somos pecadores também, a Glória devida a Deus, nos faz enfrentar familiares, amigos e superiores com respeito e amor, mas ainda assim com firmeza, visto que importa obedecer mais a Deus que aos homens (At 5.9); A graça nos empurra para amar e cuidar do nosso próximo, porque recebemos cuidado, a glória nos leva a radicalizar não abrindo mão daquilo que é devido a Deus por nada nessa terra.

Logicamente que estes aspectos da fé cristã andam juntas e não há como separá-las de forma radical, mas não considerá-las como espectros diferentes da mesma luz, leva-nos a extremos como os que vivemos hoje. Uma multidão preocupada somente em receber de Deus. Olhando-o como nosso servidor, e de fato Jesus veio nos servir (At 17.24,25; Is 64.4; Mc 10.45; Lc 12.35-37) e ainda o faz, mas todo serviço realizado a nosso favor tem como objetivo produzir a Glória de Deus. “invoca-me [eu invoco] no dia da angústia; eu te livrarei [Deus me livra], e tu me glorificarás [eu o glorifico]”(Sl 50.15). Assim vivemos um cristianismo antropocêntrico e não cristocêntrico. Queremos graça demais (como se a graça já não fosse o tudo...) e anulamos a glória devida a Deus. Miramos nosso umbigo e esquecemos a face do todo poderoso. Conhecemos a terra e esquecemos o céu. Arraigamos nas ínfimas glórias mundanas e tratamos com desdém o peso de glória que será revelado na consumação. Como crianças ingênuas ficamos brincando com a lama produzida pelo esgoto da favela, rejeitando o convite para deliciar numa linda praia em pleno verão.

Lutero foi radical quanto a glória de Deus e no auge das lutas travadas na época da reforma disse: “paz se possível, mas a verdade a qualquer custo”. Já ouvimos inúmeras vezes “em questões de relacionamentos adapte-se, em questões de princípios seja sólido como uma rocha”. Essa verdade deve atingir nossa vida, não podemos abrir mão da glória de Deus. Nascemos para isso, devemos viver assim, glorificando-o em tudo, “portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1cor 10.31). E precisamos até na nossa partida para a glória eterna glorificá-lo. Seja partindo numa linda noite de sono ou na ardente fogueira como aconteceu com inúmeros de nossos antepassados que até nessa circunstancia glorificaram ao Deus Bendito.

Que o Senhor Jesus Cristo, a Glória de Deus, por sua graça, ache em nós o que não encontrou naqueles de seu tempo que não o confessaram: “porque amaram mais a glória dos homens do que a glória de Deus”, (Jo 12.43).

Heliel carvalho

Thursday, March 06, 2008